A Guarda
Nacional Republicana (GNR), como instituição militar que é, carece de
fundamentar profunda e permanentemente a sua identidade.
Até aí
percebe-se o seu louvável interesse pela pesquisa histórica e, havendo tanta
gente na GNR (como acontece nas forças armadas) com tempo e disponibilidade
para se dedicarem a coisas-outras que não a missão de prevenção da
criminalidade e segurança das populações, e havendo ainda dinheiro do erário
público para promover iniciativas, exposições e publicações, é só natural que a
GNR tenha uma interessante dinâmica que pretende demonstrar as suas
antiquíssimas origens e a sua solidez institucional.
Todavia, a
GNR parece confundir o rigor, isenção e cientificidade que a pesquisa histórica
impõe, com um certo fervor propagandístico e, exaltando-se na sua condição
corporativa, parece procurar, não a verdade histórica, mas as verdades
convenientes à construção de uma determinada identidade institucional.
Uma das
asneiras panfletárias frequentemente repetida até à exaustão é aquela de que a
GNR descende da Guarda Municipal, que por sua vez descende da Guarda Real de
Polícia, como se se pudesse estabelecer uma linha de continuidade entre estas
organizações que existiram em momentos da história política tão diferentes e
que, precisamente pela súbita mudança de regime, foram extintas para criar
outras politicamente mais leais e distintas das anteriores.
Estas
asneiras são passadas com tanta convicção que até professores universitários já
assinam por baixo delas, aderindo a uma parada digna de Louis Ferdinand Céline!
Tal é o
caso de Bacelar Gouveia que, promovendo na Universidade Nova de Lisboa um
extraordinário negócio chamado «Estudos Avançados em Direito e Segurança», que é
simultaneamente o «Curso de Promoção a Oficial Superior da GNR», cometeu a
imprudência científica de, na nota de introdução do Mestrado em Direito e
Segurança (VI edição de 2009/2011 – versão CPOS), começar precisamente com o
erro, escrevendo a seguinte barbaridade:
“ A Guarda
Nacional Republicana foi criada por Decreto Real de 10 de Dezembro de 1801
(como “corpo permanente, constituído pelos melhores soldados escolhidos em todo
o exército…”), sob a designação de Guarda Real de Polícia. Foi depois
reformulada pelo Decreto de 3 de Maio de 1911, adoptando então a actual
designação de Guarda Nacional Republicana, mas mantendo, no essencial, a mesma
missão e natureza.”
Isto é um
pouco bizarro vindo de um eminente professor doutor e universitário!
1. Então a Guarda Nacional Republicana foi
criada na Monarquia?
2. A Guarda Real de Polícia não é baseada no modelo do
Absolutismo Francês anterior até ao surgimento da Gendarmerie, modelo
político esse que vigorou em Portugal até aos anos 30 do século XIX?
3. Saberão estes intelectuais que a Guarda Municipal
foi criada para ser uma polícia civil, tendo por base o modelo da Polícia de
Londres, mas que esse modelo foi corrompido pelos militares que aí foram
instalados?
4. Terão noção que cada uma dessas organizações foi a
guarda pretoriana de um regime diferente (Guarda Real de Polícia do
Absolutismo, Guarda Municipal da Monarquia Liberal e GNR da 1.ª República), que
tinha de se suportar numa força armada para garantir a sustentação política, e
que esse desiderato não permite confundir lealdades ou limitar-se a mudar os nomes
das coisas?
Num
“Esboço Histórico da Guarda Real de Polícia”, editado pela Divisão de História e
Cultura da Guarda, admite-se com irrepreensível adjetivação castrense o dito
pecado, quando aí se lê: “Este trabalho, evidentemente, não tem pretensão a obra
histórica de profunda investigação, e, ainda menos, a obra literária de boa
forma, mas é, sem dúvida, um paciente estudo e uma excelente coordenação a que
se entregou o seu autor, o capitão Luís Rodrigues, cuja dedicação profissional
e ardente espírito militar, mais uma vez foi altamente prestante às
instituições militares que com tanto amor serve.”
E nada
como o amor para cegar o homem, limitar a razão e nos lançar a todos em sendas
heroicas com os corações preenchidos de causas convictas mas nem sempre certas…
Todavia,
mais grave do que a tentativa de escavar por origens onde elas não podem ser
encontradas é o propagandístico descaramento que se encontra por detrás do
branqueamento de episódios bem mais recentes da história portuguesa.
Tal é o
“novo” ou recém-descoberto papel da GNR na libertação popular do 25 de Abril de
1974.
Aparentemente,
começa a defender-se a tese de que, afinal, o Quartel do Carmo não era bem o
último reduto do regime corporativo ditatorial e a GNR não era um bastião do
regime.
Esta tese
surge a partir de um livro chamado “Para além do portão, a GNR e o Carmo na
Revolução de Abril” de Nuno Andrade, um oficial da GNR.
A
propósito deste livro encontrei uma nota interessante num blogue chamado «ÁguaLisa», onde se refere o seguinte:
“Nuno
Andrade, além da boa escrita, faz prova de mérito do título de historiador.
Estão lá o rigor factual, a abordagem dos vários ângulos, a procura e teste de
teses e pistas, a moderação no envolvimento com um dos lados das partes. Mas se
o autor é historiador, também é “da casa” que continua a habitar o mesmo
quartel, sendo, como é, oficial da GNR. E, neste sentido, perpassa uma certa
condescendência para as atitudes e comportamentos da GNR encurralada nesse dia
com a missão extrema de defender os próceres da ditadura. E, aqui,
provavelmente, algum impulso de branqueamento terá ocorrido. No entanto,
diga-se, sendo um dado para tomar em conta a eventualidade de alguma
condescendência sobre a imagem da Guarda, que não parece haver um exagero de
sentimento de pertença grupal que desmereça o essencial da obra e das suas
teses. Como a de alguma atitude de passividade a caminho da neutralidade da GNR
no ocaso da ditadura (de que era um dos pilares repressivos mais fortes)
defendida por Nuno Andrade tem suporte em dois aspectos consistentes: o da
cumplicidade tendencial entre oficiais da GNR (que, sendo do Exército, lá
cumpriam missões) com os camaradas do MFA (a que acresce o culto tradicional na
GNR de então para com os dois generais que estavam na retaguarda da revolução,
ambos antigos oficiais prestigiados da corporação, casos de Spínola e Costa
Gomes) e a clareza da fragilidade do regime e as suas poucas hipóteses de
sobreviver e com os seus líderes, encurralados, a demonstrarem inépcia em se
defenderem mais a ditadura com que açaimavam um povo em ânsias de mudar e
respirar.”
A editora
«Guerra e Paz», fazendo a sinopse sobre o livro, também mergulha de
cabeça na asneira:
“Os
momentos mais marcantes e tensos da revolução de 25 de Abril de 1974 viveram-se
no Largo do Carmo, tendo como epicentro o quartel que desde 1845 funciona como
Comando da Guarda Nacional Republicana e das guardas suas antecessoras. Se, por
um lado, se encontra bastante documentado o papel dos militares do Movimento
das Forças Armadas e da população que ajudou à vitória da liberdade, por outro,
é muito escassa a documentação relativa ao papel dos militares da GNR na
Revolução e as informações sobre as últimas 14 horas do derradeiro chefe de
governo do antigo regime no interior do Quartel do Carmo. (…)«No caso do 25 de
Abril de 1974, os detalhes, o acaso ou a sorte acabaram por bafejar os
intervenientes, protegendo as manobras e impedindo o derramamento de sangue no
interior do Quartel do Carmo e no Largo do Carmo.» Nuno Andrade”
A GNR pode
ter sido fonte de múltiplos papéis, mas não se deve confundir a função que, com
tanta “dedicação profissional e ardente espírito militar”, desempenhou em favor
da ditadura com o pressuposto sentimento de democrática humanidade que terá
penetrado as mentes e corações dos seus militares quando se viram derrotados.
Esta nova
história da GNR é uma coisa preocupante e de extrema gravidade que demonstra,
mais uma vez, os perigos que as instituições militares tantas vezes representam
para as democracias.
Permitir
que uma instituição crie uma cultura interna baseada na alteração dos factos
históricos é permitir o gérmen de formas de exercício de poder que se sustentam
nas convicções impingidas aos ignorantes, que as tomam por verdadeiras e as
defendem, frequentemente, com “dedicação e ardente espírito militar”... assim é o
Autoritarismo!
Já vai
longa a hora, e parece que alguém tem de repor a verdade, antes que a verdade
mude definitivamente.
Ainda não
chegámos às pilhas de livros queimados, mas quem sabe se não tem sido feita uma
criteriosa e conveniente selecção das existências documentais?
Apelo
daqui que se estude a história, que se escreva sobre ela com isenção para que
não se permita o encobrimento da verdade. Todas as instituições do Estado Novo
tiveram as características do Estado Novo. A democracia e o respeito pelos
direitos humanos não faziam parte da cartilha, nem dos militares nem dos
polícias (o que inclui certamente a PSP).
Quanto ao
portão da GNR, continuo a preferir o muro dos GNR em Bellevue:
«Leve levemente como quem
chama por mim
Fundido na bruma no nevoeiro
sem fim
Uma ideia brilhante cintila no
escuro
Um odor a tensão do medo puro
Salto o muro, cuidado
com o cão
Vejo onde ponho o pé, iço-me a
mão
Encosto ao vidro um anel de
brilhantes
É de fancaria a fingir
diamantes»
Pois é… de fancaria a fingir diamantes…
Horácio Clemente