Nunca te esqueças de quem és!
Olha-te ao espelho todos os dias e reconhece na tua cara a justiça, a serenidade e a coragem. Na rua, levanta a cabeça com orgulho. Ainda que mais ninguém saiba, estarás lá para nos proteger a todos e, quando necessário, agirás, sem hesitação.
Nunca te esqueças de quem és porque, no dia seguinte, terás de olhar novamente o espelho e continuar a reconhecer na tua própria cara, a justiça, a serenidade e a coragem.

domingo, 17 de março de 2013

Reinventar a história

A Guarda Nacional Republicana (GNR), como instituição militar que é, carece de fundamentar profunda e permanentemente a sua identidade.

Até aí percebe-se o seu louvável interesse pela pesquisa histórica e, havendo tanta gente na GNR (como acontece nas forças armadas) com tempo e disponibilidade para se dedicarem a coisas-outras que não a missão de prevenção da criminalidade e segurança das populações, e havendo ainda dinheiro do erário público para promover iniciativas, exposições e publicações, é só natural que a GNR tenha uma interessante dinâmica que pretende demonstrar as suas antiquíssimas origens e a sua solidez institucional.

Todavia, a GNR parece confundir o rigor, isenção e cientificidade que a pesquisa histórica impõe, com um certo fervor propagandístico e, exaltando-se na sua condição corporativa, parece procurar, não a verdade histórica, mas as verdades convenientes à construção de uma determinada identidade institucional.

Uma das asneiras panfletárias frequentemente repetida até à exaustão é aquela de que a GNR descende da Guarda Municipal, que por sua vez descende da Guarda Real de Polícia, como se se pudesse estabelecer uma linha de continuidade entre estas organizações que existiram em momentos da história política tão diferentes e que, precisamente pela súbita mudança de regime, foram extintas para criar outras politicamente mais leais e distintas das anteriores.

Estas asneiras são passadas com tanta convicção que até professores universitários já assinam por baixo delas, aderindo a uma parada digna de Louis Ferdinand Céline!

Tal é o caso de Bacelar Gouveia que, promovendo na Universidade Nova de Lisboa um extraordinário negócio chamado «Estudos Avançados em Direito e Segurança», que é simultaneamente o «Curso de Promoção a Oficial Superior da GNR», cometeu a imprudência científica de, na nota de introdução do Mestrado em Direito e Segurança (VI edição de 2009/2011 – versão CPOS), começar precisamente com o erro, escrevendo a seguinte barbaridade:

“ A Guarda Nacional Republicana foi criada por Decreto Real de 10 de Dezembro de 1801 (como “corpo permanente, constituído pelos melhores soldados escolhidos em todo o exército…”), sob a designação de Guarda Real de Polícia. Foi depois reformulada pelo Decreto de 3 de Maio de 1911, adoptando então a actual designação de Guarda Nacional Republicana, mas mantendo, no essencial, a mesma missão e natureza.”

Isto é um pouco bizarro vindo de um eminente professor doutor e universitário!

1. Então a Guarda Nacional Republicana foi criada na Monarquia?

2. A Guarda Real de Polícia não é baseada no modelo do Absolutismo Francês anterior até ao surgimento da Gendarmerie, modelo político esse que vigorou em Portugal até aos anos 30 do século XIX?

3. Saberão estes intelectuais que a Guarda Municipal foi criada para ser uma polícia civil, tendo por base o modelo da Polícia de Londres, mas que esse modelo foi corrompido pelos militares que aí foram instalados?

4. Terão noção que cada uma dessas organizações foi a guarda pretoriana de um regime diferente (Guarda Real de Polícia do Absolutismo, Guarda Municipal da Monarquia Liberal e GNR da 1.ª República), que tinha de se suportar numa força armada para garantir a sustentação política, e que esse desiderato não permite confundir lealdades ou limitar-se a mudar os nomes das coisas?

Num “Esboço Histórico da Guarda Real de Polícia”, editado pela Divisão de História e Cultura da Guarda, admite-se com irrepreensível adjetivação castrense o dito pecado, quando aí se lê: “Este trabalho, evidentemente, não tem pretensão a obra histórica de profunda investigação, e, ainda menos, a obra literária de boa forma, mas é, sem dúvida, um paciente estudo e uma excelente coordenação a que se entregou o seu autor, o capitão Luís Rodrigues, cuja dedicação profissional e ardente espírito militar, mais uma vez foi altamente prestante às instituições militares que com tanto amor serve.”

E nada como o amor para cegar o homem, limitar a razão e nos lançar a todos em sendas heroicas com os corações preenchidos de causas convictas mas nem sempre certas…

Todavia, mais grave do que a tentativa de escavar por origens onde elas não podem ser encontradas é o propagandístico descaramento que se encontra por detrás do branqueamento de episódios bem mais recentes da história portuguesa.

Tal é o “novo” ou recém-descoberto papel da GNR na libertação popular do 25 de Abril de 1974.

Aparentemente, começa a defender-se a tese de que, afinal, o Quartel do Carmo não era bem o último reduto do regime corporativo ditatorial e a GNR não era um bastião do regime.

Esta tese surge a partir de um livro chamado “Para além do portão, a GNR e o Carmo na Revolução de Abril” de Nuno Andrade, um oficial da GNR.

A propósito deste livro encontrei uma nota interessante num blogue chamado «ÁguaLisa», onde se refere o seguinte:

“Nuno Andrade, além da boa escrita, faz prova de mérito do título de historiador. Estão lá o rigor factual, a abordagem dos vários ângulos, a procura e teste de teses e pistas, a moderação no envolvimento com um dos lados das partes. Mas se o autor é historiador, também é “da casa” que continua a habitar o mesmo quartel, sendo, como é, oficial da GNR. E, neste sentido, perpassa uma certa condescendência para as atitudes e comportamentos da GNR encurralada nesse dia com a missão extrema de defender os próceres da ditadura. E, aqui, provavelmente, algum impulso de branqueamento terá ocorrido. No entanto, diga-se, sendo um dado para tomar em conta a eventualidade de alguma condescendência sobre a imagem da Guarda, que não parece haver um exagero de sentimento de pertença grupal que desmereça o essencial da obra e das suas teses. Como a de alguma atitude de passividade a caminho da neutralidade da GNR no ocaso da ditadura (de que era um dos pilares repressivos mais fortes) defendida por Nuno Andrade tem suporte em dois aspectos consistentes: o da cumplicidade tendencial entre oficiais da GNR (que, sendo do Exército, lá cumpriam missões) com os camaradas do MFA (a que acresce o culto tradicional na GNR de então para com os dois generais que estavam na retaguarda da revolução, ambos antigos oficiais prestigiados da corporação, casos de Spínola e Costa Gomes) e a clareza da fragilidade do regime e as suas poucas hipóteses de sobreviver e com os seus líderes, encurralados, a demonstrarem inépcia em se defenderem mais a ditadura com que açaimavam um povo em ânsias de mudar e respirar.”

A editora «Guerra e Paz», fazendo a sinopse sobre o livro, também mergulha de cabeça na asneira:

“Os momentos mais marcantes e tensos da revolução de 25 de Abril de 1974 viveram-se no Largo do Carmo, tendo como epicentro o quartel que desde 1845 funciona como Comando da Guarda Nacional Republicana e das guardas suas antecessoras. Se, por um lado, se encontra bastante documentado o papel dos militares do Movimento das Forças Armadas e da população que ajudou à vitória da liberdade, por outro, é muito escassa a documentação relativa ao papel dos militares da GNR na Revolução e as informações sobre as últimas 14 horas do derradeiro chefe de governo do antigo regime no interior do Quartel do Carmo. (…)«No caso do 25 de Abril de 1974, os detalhes, o acaso ou a sorte acabaram por bafejar os intervenientes, protegendo as manobras e impedindo o derramamento de sangue no interior do Quartel do Carmo e no Largo do Carmo.» Nuno Andrade”

A GNR pode ter sido fonte de múltiplos papéis, mas não se deve confundir a função que, com tanta “dedicação profissional e ardente espírito militar”, desempenhou em favor da ditadura com o pressuposto sentimento de democrática humanidade que terá penetrado as mentes e corações dos seus militares quando se viram derrotados.

Esta nova história da GNR é uma coisa preocupante e de extrema gravidade que demonstra, mais uma vez, os perigos que as instituições militares tantas vezes representam para as democracias.

Permitir que uma instituição crie uma cultura interna baseada na alteração dos factos históricos é permitir o gérmen de formas de exercício de poder que se sustentam nas convicções impingidas aos ignorantes, que as tomam por verdadeiras e as defendem, frequentemente, com “dedicação e ardente espírito militar”... assim é o Autoritarismo!

Já vai longa a hora, e parece que alguém tem de repor a verdade, antes que a verdade mude definitivamente.

Ainda não chegámos às pilhas de livros queimados, mas quem sabe se não tem sido feita uma criteriosa e conveniente selecção das existências documentais?

Apelo daqui que se estude a história, que se escreva sobre ela com isenção para que não se permita o encobrimento da verdade. Todas as instituições do Estado Novo tiveram as características do Estado Novo. A democracia e o respeito pelos direitos humanos não faziam parte da cartilha, nem dos militares nem dos polícias (o que inclui certamente a PSP).

Quanto ao portão da GNR, continuo a preferir o muro dos GNR em Bellevue:

«Leve levemente como quem chama por mim

Fundido na bruma no nevoeiro sem fim

Uma ideia brilhante cintila no escuro

Um odor a tensão do medo puro

Salto o muro, cuidado com o cão

Vejo onde ponho o pé, iço-me a mão

Encosto ao vidro um anel de brilhantes

É de fancaria a fingir diamantes»

Pois é… de fancaria a fingir diamantes…

 
Horácio Clemente