No dia 6 de outubro 2012, Carlos Anjos e Helena Gravato foram “Os convidados” do Diário de Notícias, escrevendo um comentário com o título “Será o nosso modelo tão mau?”
Embora não estando totalmente de acordo com todas as perspectivas e argumentos adiantadas por estes dois inspetores da Polícia Judiciária e sindicalistas daquela Polícia, devo dizer que já há algum tempo alimentava esperança de ler algo que indicasse que alguém fora da PSP já tinha percebido os riscos de uma aposta feita em repartições de competências a regra e esquadro, tendo por base, não estudos de racionalidade, eficácia e eficiência sérios, mas opiniões e interesses políticos e corporativos.
Carlos Anjos e Helena Gravato fazem-no e ao fazê-lo, muito em defesa dos interesses da sua própria corporação, usam de cuidado e cordialidade, expressando muitas questões de forma assertiva, merecendo nessas, a minha inteira concordância.
Vou focar-me naquilo em que me aproxima das opiniões destes dois membros da Polícia Judiciária, deixando aquilo com que não concordo para outra oportunidade.
Por partes:
1. Concordo que se deve repensar a segurança em Portugal
2. Julgo que é importante racionalizar estruturas, simplificar canais de comunicação e eliminar duplicações
3. Parece-me ser imprescindível garantir a segurança dos cidadãos prevenindo a criminalidade e mantendo a ordem e paz públicas
4. Assumo que é irrefutável garantir bons níveis de sucesso na investigação criminal
5. Concordo que a existir um sistema dual em Portugal, o critério da sua existência não deve estar no estatuto civil ou militar das organizações que o compõem, mas na especificidade da sua missão e, dizendo-o, concordo ainda que Portugal e os portugueses têm a ganhar em ter apenas duas Polícias:
a. Uma Força de Segurança civil multifuncional que integre competências de polícia administrativa geral e especial, bem como de polícia criminal para a investigação de determinado tipo e nível de criminalidade, dotada de um conjunto alargado de ferramentas operacionais para acorrer a uma multiplicidade de níveis de risco/ameaça
b. Uma Polícia de Investigação Criminal altamente especializada e munida das ferramentas adequadas a fazer face à criminalidade organizada e transnacional, à criminalidade violenta e grave, aos crimes de corrupção e a outras atividades conexas.
6. Considero condição primordial para a melhoria da nossa segurança e da nossa justiça, a criação de uma plataforma de informações policiais única comum, alimentada e consultada em níveis distintos pelos órgãos de polícia criminal, mantida, controlada e fiscalizada por um organismo terceiro e independente, e especialmente, isenta da intervenção do conjunto designado por “poder político”
Passarei a explicar sucintamente cada uma das minhas posições.
1. Concordo que se deve repensar a segurança em Portugal
Devemos repensar a segurança em Portugal porque não temos um verdadeiro sistema. Por definição, um sistema constrói-se a partir da reunião de diversos elementos que têm uma função distinta, mas que colaboram na concretização de um fim comum.
Como bem assinalam Carlos Anjos e Helena Gravato temos várias organizações a fazer o mesmo e, logo, a competir entre si, atropelando-se e atrapalhando-se para conseguir um pouco de protagonismo.
É um milagre tamanha confusão obter tão bons resultados e, na verdade, os portugueses não dão o devido valor às suas polícias, nem à paz, tranquilidade e segurança de que gozam por causa delas.
Ora, aparentemente, o Governo quer resolver o problema do “não sistema”, criando vários outros problemas e isso acontece porque a ideia da reforma da Segurança Interna está a ser dirigida, essencialmente, por pessoas que nada sabem sobre o assunto e que, ainda por cima, têm ou defendem interesses corporativos e sectores da atividade económica privada.
Daí que seja tão evidente o esforço para garantir que na dita “reforma” tudo se funde e integra menos a GNR que apenas aumenta as suas competências por depredação dos restantes.
Este é o movimento típico das organizações políticas ultraliberais que só mantêm em equilíbrio aquilo que pode constituir um risco permanente para a manutenção do poder, mas que, em simultâneo, colabora bem se for bem alimentado: os militares.
Lembremo-nos de que a GNR é, cada vez mais assumidamente, uma organização militar e dá lugar a generais. Temos de manter o caminho livre para essa gente existir e multiplicar-se.
Quem está por detrás destes modelos de segurança interna e das concepções teóricas que o tentam fundamentar? O já amplamente mencionado general Carlos Chaves, oficial do exército que passou pelo Comando da Formação e Doutrina da GNR e que agora é assessor do Primeiro Ministro para a segurança nacional (?) que chegou ao cúmulo de enviar o programa de governo relativo à segurança e defesa da plataforma de serviço da GNR onde o mesmo foi desenvolvido com outros militares dessa força; o Eng. Ângelo Correia que se diz ser filho de um sargento da GNR e que presidiu às Comissões Parlamentares de Defesa Nacional (1978-1981 e 1983-1985), sendo Ministro da Administração Interna no VIII Governo Constitucional e que, mais recentemente, foi Presidente da Associação das Empresas de Segurança (privada, claro!), cargo em que lhe sucedeu o Dr. Rogério Alves; os membros habituais das tertúlias da Revista Segurança e Defesa, do Instituto de Defesa Nacional, da Revista Defesa e Relações Internacionais, do OSCOT e da Universidade Nova onde se lecciona um curso de mestrado em “Direito& Segurança”, cujo diretor é o Prof. Doutor Jorge Bacelar Gouveia. Este curso foi criado com uma versão que garante a formação de Oficiais da GNR no âmbito do Curso de Promoção a Oficial Superior sendo que, nessa versão, a propina da 1ª fase é paga pelo Comando-Geral da GNR à FDUNL. O mesmo é dizer com o orçamento que o Ministério da Administração Interna destina à GNR, sendo certo que os oficiais da GNR se formam na Academia Militar, fazem formação para oficiais superiores no Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM) e ignoram a existência de um estabelecimento de ensino superior universitário público policial (o único em Portugal) que se chama Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna que poderia fornecer a mesma qualificação, com igual qualidade, sob o chapéu da mesma tutela e de forma mais barata para o erário público. Porquê? Porque são militares, querem ser militares e têm desprezo pelas polícias e pelos polícias.
Com ligações a esse curso encontramos nomes como Prof. Doutor José Manuel Anes, Prof. Doutor Nelson Lourenço, General Doutor Loureiro dos Santos e alguns militares e oficiais de polícia (é daqueles cursos em que é condição pagar e receber e em que todos ganham). É por essas razões que foi na Universidade Nova que se organizou o I Congresso de Segurança e Democracia no passado dia 30 de Novembro de 2012, contando com as pessoas do costume e com uma carta fora do baralho, o Embaixador Vítor Ângelo que fez o favor de destoar do coro de monótonos balidos que nos querem convencer a ingerir mais uma reforma irracional, teoricamente mal concebida, sem estudos de natureza organizacional, económica ou social e contaminada de interesses muito particulares.
Para se repensar a segurança interna temos de começar a libertar-nos das pré-concepções que estes doutrinadores nos querem impingir.
O conceito vago de segurança e defesa, os conceitos estratégicos de segurança e defesa nacional e outras tantas megalomanias que têm em comum o factor militarizante da segurança.
A segurança dos cidadãos é assunto civil, não é assunto militar!
A segurança relaciona-se mais com a justiça do que com a defesa!
Se tivermos estas duas ideias presentes, será mais difícil enganarem-nos.
2. Julgo que é importante racionalizar estruturas, simplificar canais de comunicação e eliminar duplicações
Como já referi não temos um verdadeiro sistema de segurança interna e o único passo que foi dado até hoje para estabelecer ligações entre os múltiplos serviços que podem concorrer para a segurança dos portugueses, redundaram na criação de mais estruturas de coordenação, grupos de cooperação e de trabalho, cargos de nomeação, projetos e esforços de cooperação. Nada disso eliminou competições, bloqueios e constantes e crescentes tentativas de depredação inter-institucionais.
No estado em que nos encontramos quer como país, quer como Estado, racionalizar implica efetivamente reduzir estruturas, fundir organismos e eliminar quadros dirigentes.
Como podemos ser mais eficientes e simultaneamente mais eficazes?
Se compararmos as diversas forças e serviços de segurança verificamos com facilidade enormes diferenças orçamentais, estruturais, organizacionais que apontam para a falta de racionalidade e de método na criação das estruturas da administração pública.
O conhecimento de dados como os do número de quadros dirigentes per capita, o valor das remunerações comparadas com as categorias e suas funções, o custo geral de cada organização e o produto geral que corresponde à missão de cada uma delas, traça um quadro de perfeita incoerência que é preciso corrigir.
Não me parece errado pensar em fundir algumas polícias e, apesar das resistências próprias das culturas institucionais que se vão impregnando em cada um dos seus elementos, um processo bem conduzido pode obter sucesso ao final de uma década (no mínimo), estabilizando carreiras e competências. Menos do que isso parece-me manifestamente irrealista.
Porque não já?
Porque os sucessivos governos se encarregaram de criar diferenças abissais entre os estatutos e organizações das diversas forças e serviços o que, hoje, implica um esforço gradual de aproximação se se pretende garantir que ninguém perde os direitos que lhe foram prometidos e que legitimamente serão reclamados.
Para comprovar estas afirmações, consultem-se as tabelas de vencimento das diversas categorias de cada uma das nossas polícias, compare-se com o conteúdo funcional de cada uma e perceba-se o imbróglio!
Por outra via, o caminho para a simplificação da segurança interna, passa por assumir definitivamente que é preciso extinguir a GNR enquanto força de segurança, polícia administrativa e órgão de polícia criminal.
Para isso é preciso primeiro fazer frente ao lobbymilitar, fechando-lhes definitivamente a porta. Algo que os políticos não querem fazer.
A manutenção da GNR tem um profundo significado político que se relaciona com a confiança nas instituições. Apesar de ter sido a única força a participar em golpes de estado ao longo da sua história, é a esta e não as polícias de matriz civil que merece a confiança do poder, porque a sua colagem é à estrutura, modo de funcionamento e filosofia militares e não ao serviço público independente sujeito ao escrutínio público e jurisdicional.
Uma reforma racional começaria, como referem Carlos Anjos e Helena Gravato, por fazer desaparecer a única organização que conflitua com todas as restantes em todos os campos da sua actuação e que demonstra ter um enorme apetite por tudo aquilo que os outros fazem.
Curiosamente está a ser introduzida no discurso público, especialmente aquele veiculado pelos “sábios do costume” de que já falamos e outros doutrinadores como o tenente-coronel da GNR José Carlos Alves, a ideia de que a GNR já não é uma polícia rural e que está fadada a exercer competências especiais em contexto urbano em paralelo com a PSP.
Esta ideia até parece lógica e os governos têm permitido à GNR a constituição de unidades que, efetivamente, se dedicam a tudo, menos a garantir a segurança dos mais de 90% do território nacional, onde residem pouco menos de 50% da população portuguesa, locais e cidadãos que mais sentem a falta de policiamento e onde a criminalidade efetivamente sobe sem controlo.
A aposta da GNR está em reconstituir Brigadas de Trânsito e Brigadas Fiscais, Unidades de Intervenção, Cavalaria, Operações Especiais, aprontamento de forças constituídas para missões internacionais, etc… não está em garantir a segurança da população e território a seu cargo.
Não é compreensível que uma força de segurança com a responsabilidade da GNR, tenha mais de 30% do seu efetivo fora da sua área de atuação.
Por outro lado, se a GNR não é a polícia rural, então qual é?
Portanto, onde estão as irracionalidades e as sobreposições?
Apesar de pensar que a fusão entre forças e serviços será uma necessidade e uma inevitabilidade a curto / médio prazo e que essa fusão abrangerá necessariamente PSP, SEF e ASAE (que possuem a mesma origem histórica e a mesma matriz original), o caminho da racionalidade começa em desfazer a monstruosidade em que se está a tornar a GNR.
Esse processo deverá dar oportunidade de escolha aos profissionais da GNR entre serem polícias ou serem militares.
3. Parece-me ser imprescindível garantir a segurança dos cidadãos prevenindo a criminalidade e mantendo a ordem e paz públicas
Esta afirmação não carece de explicação. A constituição de qualquer Polícia deve privilegiar o caráter preventivo da criminalidade e insegurança nas suas mais diversas vertentes, exercendo complementarmente actividades de repressão dos ilícitos, sejam eles criminais ou não.
4. Assumo que é irrefutável garantir bons níveis de sucesso na investigação criminal
E acredito que esses níveis melhoraram progressivamente desde 1995 e depois a partir de 2000 com a publicação da Lei de Organização da Investigação Criminal que redistribuiu competências de investigação criminal entre a Polícia Judiciária e as restantes forças e serviços de segurança.
A ideia inicial mantém-se válida, não obstante existir uma clara resistência a perceber porque é que a investigação criminal hoje é melhor do que aquela que existia há 12 ou há 17 anos. Efectivamente ainda não se conseguiu que a Polícia Judiciária se adaptasse a funções de investigação num patamar realmente elevado mas também é verdade que o “sistema” existente não lhes garante todos os recursos de que necessitam para fazer essa adaptação, nomeadamente um acesso a toda a informação de que necessitam e uma colaboração estreita com um e não múltiplos organismos concorrentes.
É por essa razão que a Judiciária se vê em competição com os restantes órgãos de polícia criminal.
Todavia, o que se pretende e sempre pretendeu foi que a Judiciária se especializasse e se dedicasse exclusivamente à criminalidade considerada grave, violenta ou altamente organizada, julgo que é esse o patamar que lhe deve caber e é o único que justifica a sua autonomia.
O que me leva a declarar que…
5. Concordo que a existir um sistema dual em Portugal, o critério da sua existência não deve estar no estatuto civil ou militar das organizações que o compõem, mas na especificidade da sua missão e, dizendo-o, concordo ainda que Portugal e os portugueses têm a ganhar em ter apenas duas Polícias
Sendo uma a Polícia Nacional, civil, integral no sentido em que detém a generalidade das competências administrativas e criminais, bem como recursos operacionais normais e especiais que lhe permitem acorrer ao conjunto dos desvios e ameaças à ordem, segurança e justiça e outra, a Polícia Judiciária, autónoma na sua acção, especializada nas investigações mais complexas, capacitada tecnologicamente, eficiente, eficaz e robusta contra a intervenção política no desempenho da sua missão, capaz técnica e legalmente de colaborar ou assumir por inteiro investigações em curso a partir da descoberta de determinado patamar de indícios, o que justifica o facto de ainda considerar …
6. (…) condição primordial para a melhoria da nossa segurança e da nossa justiça, a criação de uma plataforma de informações policiais única comum, alimentada e consultada em níveis distintos pelos órgãos de polícia criminal, mantida, controlada e sindicada por um organismo terceiro e independente, especialmente do conjunto designado por “poder político”
PM