Nunca te esqueças de quem és!
Olha-te ao espelho todos os dias e reconhece na tua cara a justiça, a serenidade e a coragem. Na rua, levanta a cabeça com orgulho. Ainda que mais ninguém saiba, estarás lá para nos proteger a todos e, quando necessário, agirás, sem hesitação.
Nunca te esqueças de quem és porque, no dia seguinte, terás de olhar novamente o espelho e continuar a reconhecer na tua própria cara, a justiça, a serenidade e a coragem.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O Exército, a Política e o Destino Nacional

Francisco de Sousa Tavares publicou no dia 12 de fevereiro de 1981, nas páginas do já encerrado jornal A Capital, um texto a que deu o nome «O Exército, a Política e o Destino Nacional». Parecendo que os tempos de hoje têm o odor daqueles que já passaram, importa recordar o que escreveu aquele detentor quer de pensamento, quer de voz independente e crítica:

«Se continuarmos a trilhar os mesmos caminhos que até aqui trilhámos, há que ter a coragem de afirmar que a democracia em Portugal não criará raízes, e que cedo voltaremos ao triste destino dos povos resignados e submissos, cujo destino não é desenhado pela liberdade dos homens.

Quero referir-me ao peso brutal, à influência dominante que, contra todas as afirmações e belas declarações de princípios sempre repetidas, as Forças Armadas continuam a ter no projecto político, na estratégia económica e na equação financeira da nação.

Nós sabemos que são gloriosas. Aliás, não me consta que em nenhum país do mundo, desde o Tobago e as ilhas Maurícias até à URSS ou aos EUA, as forças armadas não sejam gloriosas, e sempre espelho do espírito de sacrifício em prol do interesse do povo e da nação. Não podemos ter dúvidas: entre o peito constelado de condecorações dos autores de feitos brilhantes e a envergonhada nudez dos homens do comum que, como eu, nada fizeram pela Pátria nem pela comunidade, existe um abismo que seria pura estultícia pretender eliminar.

É certo que dúvidas se levantam por vezes sobre a utilidade funcional ou sobre a ocupação produtiva desse escol consagrado por uma tão larga teoria de privilégios tradicionais e legais. Poderá não ser facilmente compreensível qual o inimigo lunar ou subterrâneo contra o qual mantemos, aguerrido e eficaz, um exército numeroso e permanente; fatalmente, em cada ano haverá quem estranhe que no Orçamento do Estado, nesta pobre nação com 30% de analfabetos e um nível de vida tão baixo e tão triste, se gaste mais dinheiro com as Forças Armadas do que com a educação, a saúde, a habitação, o fomento agrícola.

Haverá quem estranhe. Haverá quem tenha a coragem de querer compreender como um País sem problemas geográficos de defesa gaste um quinto das receitas do Estado e quase um décimo do rendimento nacional bruto na sustentação obsoleta de um corpo social cuja única finalidade visível é a perpetuação de si próprio e do seu particularíssimo estatuto de vantagens que largamente o diferencia do comum da nação.

Este é um problema frontalmente posto à democracia portuguesa. Temos nós portugueses o direito democratíssimo e indiscutível de redefinirmos a essência e a finalidade do corpo armado posto ao serviço da soberania nacional, ou temos de aceitar que esse corpo se situa à margem da vontade do povo e dotado de uma soberania própria, se traça a próprio os seus direitos, o seu destino e os seus próprios limites?

Acima de tudo temos de olhar a realidade nacional: os juros da dívida pública e o pagamento dos funcionários públicos totalizam praticamente o conjunto das receitas do Estado; tudo o resto desde o fomento às infra-estruturas, à política social, ao desenvolvimento, à cultura tem sido obtido por défice orçamental. Isto é, gasta o Estado anualmente mais 150 milhões (deverão ser cerca de 170 este ano) de contos do que aquilo que recebe.

É preciso que o povo saiba, porque os demagogos não lho dizem, que é o défice do Estado que cria fundamentalmente a inflação, os aumentos dos preços, a instabilidade dos rendimentos e salários. É preciso que o povo saiba que quando no Parlamento ou fora dele todos gritam contra a insuficiência das verbas para a educação, para a saúde, para as autarquias, para os transportes, para o fomento da produção, para a investigação técnica, para os deficientes, para a terceira idade, para a habitação, numa palavra, para toda a imensa fome de um pouco de alegria e segurança que este povo não tem, não há um que explique ou indique como é que simultaneamente se pode parar a alta dos preços e aumentar a produção.

A verdade é que, em cada ano, o estado fabrica moeda falsa. Tal como os reis da Idade Média «quebravam» a moeda de bronze ou de ouro, dando-lhes o mesmo valor de fachada mas esvaziando o seu valor real, os Governos de agora, émulos de Alves dos Reis, encomendam uns pacotes de notas com o mesmo nome mas cujo poder de compra diminui em cada dia.

E o que nenhum desses demagogos é capaz de fazer é atacar de frente os grandes males que minam a economia e as finanças da nação. Não são com certeza capazes de denunciar o peso insólito e inadmissível que o funcionalismo, cada dia multiplicado, e numa enorme percentagem inteiramente inútil tem no pobre orçamento do Estado português. E muito menos lhes sobra a coragem ou a convicção para afirmar que aquilo que se gasta nas Forças Armadas é um escândalo todos os anos repetido.

E é um escândalo não só financeiro e económico como um escândalo político, na medida em que revela a força militar sobre a vontade do poder civil e torna ridículas e falazes todas as solenes declarações, seja quem for que as faça sobre as lindas intenções da plenitude democrática e da submissão do poder militar ao poder civil.

Não temos medo da palavra escândalo: a nação continua a gastar com o seu exército, em números reais, verbas similares àquelas que gastava quando sustentava três frentes de combate colonialista em África. E simultaneamente, não temos meios de ocupação real do território marítimo, a única evidente e urgente missão que cabe neste momento afirmar como acto de soberania nacional vital para a defesa dos nossos interesses, e sem a qual é idiota pensar sequer numa refundição digna e real da política das pescas.

A remodelação total da concepção e orgânica da instituição militar é uma necessidade fundamental para o futuro da democracia portuguesa e para a definição capaz de uma política financeira. Ela tem que se traduzir num novo e moderno conceito de defesa, numa lei que o exprima e num esclarecimento nacional da finalidade do corpo armado, porque tal como existe neste momento nos assiste a todos o direito de perguntar: para que serve, e para que servem? Será para defesa do Ocidente – tal como se dizia há dez anos– ou será para fins de intervenção e tutela política?

A resposta é urgente. Uma nova política de defesa é um elemento primário da institucionalização da democracia. E a sua definição não pode caber aos próprios interessados – ensimesmados em grande parte em hábitos e conceitos obsoletos, mas sim ao poder democrático autêntico e limpo de gangas que uma revisão constitucional tem que consagrar.»

Naturalmente não concordo com a totalidade das ideias de Francisco de Sousa Tavares, mas este texto brilhante suscitou-me um pensamento: Que bom teria sido se no seio dos caducos, interesseiros e bafientos “sábios” (decorados e não decorados com natalícias medalhas) que dejetaram o “novo” Conceito Estratégico de Segurança e Defesa Nacional, tivesse estado um homem inteligente e livre como era este.

PM