Augusto José Monteiro Valente (1944 – 2012), Major-general do
Exército que exerceu funções na GNR entre 1999 e 2003, saindo da guarda depois
de ter sido 2.ºcomandante-geral daquela força militar, publicou em Outubro de
2011, uma reflexão interessante sobre a segurança interna e os modelos de
polícia.
“(…)convenhamos que é um luxo incompatível com a
situação financeira do país e com as carências de efectivos para o policiamento
geral ter uma unidade de comando de oficial general destinada essencialmente a
prestar honras de Estado. Porque não se atribui esta missão às Forças Armadas?
(…)”
Como não é raro entre os militares, após uma problematização coerente,
chegou lamentavelmente a conclusões erradas, acompanhando o fraco e mal
sustentado modelo de manutenção da GNR com atribuições diferenciadas de uma
Polícia Nacional e explicando mal como é que isso se conjuga com a exposição
que acabara de fazer (basicamente o modelo Fontoura!).
As suas propostas contêm o desvio habitual: enfermam do mal
corporativo de querer defender a manutenção de estruturas militares supérfluas,
dando-lhes competências que não têm ou que não exercem melhor (ou há mais tempo
que outros) para poder justificar a sua existência e consolidar o poder.
Sem querer descontextualizar, seleccionei alguns excertos deste
texto que foi publicado na revista «Modus Operandi», n.º 4, da Associação
Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária
(ASFIC).
1. Sobre o facto de existirem
polícias a mais:
“O MAI tem respondido sistematicamente afirmando que a média de
polícias por habitante em Portugal é sensivelmente idêntica à média europeia
(250/300 por habitante) –o que é uma verdade. O MAI, todavia, tem omitido
sempre a informação sobre o quantitativo dos efetivos que está permanentemente
desviado da sua função primária e, igualmente, nada diz sobre os que são
desperdiçados por um modelo policial excessivamente diversificado e com muitas
áreas de sobreposição de competências, pela multiplicação de estruturas
administrativas, logísticas, operacionais e de instrução, por uma organização
excessivamente burocratizada e por um dispositivo territorial demasiado
atomizado.
Em nosso entender, o problema fulcral reside, desde logo, na
multiplicidade de corpos policiais. Portugal tem mantido um sistema de dupla
componente policial, cujo paradigma reside na coexistência de dois corpos
policiais, um de natureza militar e outro civil, com competências genéricas
comuns (de polícia administrativa e criminal) em todo o País, embora com
jurisdição territorial repartida e algumas competências específicas. (…) Por
outro lado, Portugal adoptou um modelo de pluralismo horizontal, com vários
corpos policiais autónomos de competência geral e específica – GNR, PSP,
Polícia Judiciária, Polícia Marítima, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras,
polícias Municipais, Polícia Judiciária Militar e Polícias Militares dos Ramos
das Forças Armadas, e várias outras, num total de cerca de 20, todos com
estruturas superiores sobredimensionadas.
Esta situação resulta naturalmente na sobreposição de competências
policiais, em conflitos negativos de disputa de protagonismo, em dificuldades
de articulação e coordenação, na perda de eficácia geral, e em maiores encargos
em recursos humanos, materiais e financeiros.”
2. Sobre a reforma da Lei Orgânica
da GNR no tempo do Governo Sócrates e ministro Rui Pereira:
“As últimas reformas das Forças de Segurança só agravaram a
situação, na medida em que acentuaram a componente da reacção/intervenção sobre
a da prevenção e o centralismo sobre a proximidade dos cidadãos, criando ao
mesmo tempo, novas situações de sobreposição de competências, como são os casos
da Unidade Costeira da GNR com a Polícia Marítima (duas marinhas no mesmo país)
e dos Grupos de Intervenção Proteção e Socorro (GIPS) com a Proteção Civil, e
agravando-se o sobredimensionamento dos órgãos superiores de comando e
direcção, com prejuízo para a disponibilidade dos efectivos para a sua missão
primária– o policiamento.
Veja-se, a título de exemplo, de exemplo, a última reforma da GNR
(Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro). Os quatro comandos regionais foram extintos
para dar lugar a três novos órgãos centrais de comando de oficial general; dois
Regimentos de Lisboa (de comando de Coronel) deram lugar a duas unidades de
comando de oficial general (Unidade de Segurança e Honras de Estado e Unidade
de Intervenção); o comando-geral da Guarda (que de 4 oficiais generais
anteriormente, conta agora com 7) passou a comandar diretamente os dezoito
comando territoriais (distritais) no continente (que de 1 tenente-coronel e 1
capitão adjunto, passaram a 1 coronel, 1 tenente-coronel e 3 majores) e mais
dois nas Regiões Autónomas, com o consequente aumento de dificuldades de
controlo da situação real e de resposta a situações de emergência.”
Em nota de rodapé escreve ainda sobre a Unidade de Segurança e
Honras de Estado:
3. Sobre o impacto de tudo isto:
“Note-se que, para além das consequências financeiras, o aumento
do número de graduados afecta a disponibilidade de efectivos para o serviço
policial, na medida em que em forças bastante hierarquizadas os quadros são por
regra menos empenhados na actividade operacional.
O Estado tem-se mostrado fraco a combater os corporativismos,
cedendo com demasiada facilidade a propostas ditadas por pressões internas e
pela disputa de protagonismos pessoais e/ou institucionais; e tem revelado,
igualmente, muita hesitação, e mesmo alguma incompetência, nas reformas que tem
levado a efeito. A situação de crise financeira que Portugal vive poderia, e
deveria, ter constituído a oportunidade para repensar todo o sistema de
segurança interna, optimizando os recursos e dotando-os de maior racionalidade
e eficácia, mas foi mais uma oportunidade perdida, e as reformas que se fizeram
foram em sentido contrário.”
Como já referi, a exposição é interessante e coerente e as
conclusões nada têm a ver com o que foi exposto, tal é o esforço para garantir
que nada compromete a eterna aliança castrense.
O discurso do General o que faz, em certa medida, é dar argumentos
à posição contrária. O que defende é exatamente o oposto do que acabara de
argumentar.
Seguindo coerentemente os seus argumentos, dir-se-ia que o sistema
policial deveria ter uma Polícia Nacional e uma Polícia Judiciária.
Á margem deste modelo estritamente policial, poderia existir uma
guarda, inteiramente militar, sem competências policiais administrativas ou
criminais no território e junto das populações, mas com a possibilidade de
garantir o que atualmente faz a Polícia Marítima na água, a Polícia Judiciária
Militar dentro dos quartéis e as Polícias Militares dos ramos das Forças
Armadas no controlo interno das tropas.
Se isto fosse defendido, teríamos certamente concordado com tudo.
É uma constatação de facto que a GNR quer ser militar. Pois que
seja… deixando de ser polícia e força de segurança!
PM