O Operacional, um dos veículos de comunicação do lobby militar em Portugal, apresentou no passado dia 18 de Março de 2011, um artiguelho do Coronel Carlos Gervásio Branco da GNR que, como seria de esperar, não podia deixar de se juntar ao esforço expansionista da briosa Guarda Nacional Republicana. O tema é a questão da segurança aeroportuária que tanta tinta fez correr e, desta vez, o enquadramento eufémico utilizado é a coordenação das forças de segurança, ou melhor, a falta dela.
Apresentado por Miguel Silva Machado, fundador e escritor frequente do site, o Coronel Carlos Gervásio Branco, surge como arauto da verdade que esclarece os pobres de espírito e alumia o caminho dos desvalidos e dos ignaros.
O Polícia Sinaleiro, não resiste a reproduzir na íntegra o intróito de Miguel Machado:
“O Coronel de Infantaria da Guarda Nacional Republicana Carlos Gervásio Branco, já bem conhecido dos nossos leitores, aborda neste artigo de modo muito claro e perceptível, como é aliás seu hábito, uma questão que está sempre na “ordem do dia” entre nós, a “coordenação na segurança interna” e mostra que nem sempre as coisas são o que parecem.”
É inquestionável que o militar é um homem inteligente e conhecedor, mas neste caso, o que fez foi nublar o assunto, desviando a atenção do verdadeiro problema que está na génese desta infeliz polémica.
Ora, defende o “grande doutrinador” da guarda, que “a falta de coordenação entre as várias forças e serviços de segurança, constitui o verdadeiro problema da segurança interna em Portugal.”
Mas, mais do que isso “o real problema reside a montante, aquando da definição política do modelo de segurança do país e subsequentemente das leis enquadradoras do mesmo, a propalada falta de coordenação nada significa, quando comparada com as indefinições dos decisores políticos e as contradições da legislação produzida.”
Não podemos deixar de concordar com a douta apreciação do Coronel, a nossa discordância reside na retorcida lógica que utiliza na sua retórica para justificar a complexificação do nosso sistema.
Pegando no exemplo do “conflito” entre a GNR e a PSP a propósito da segurança do aeroporto de Beja, o Coronel constata que o caso “não se trata de uma questão de falta de coordenação, mas antes de deficiente legislação, falta de clareza do modelo de segurança português e por último, de um eventual incumprimento da lei que embora deficiente, não deixa de ser lei.”
De seguida apresenta o quadro legal, referindo:
“As leis nº 57/2007 e nº 63/2007, respectivamente leis orgânicas da PSP e da GNR, ambas atribuem a cada uma daquelas forças, entre outras, “a vigilância e protecção de infra-estruturas aeroportuárias“, ou seja, é a própria lei que atribui a mesma competência às duas forças, o que, de per se se constitui o factor de conflitualidade.
Contudo de acordo com aquele comentador, e uma vez que o país está dividido entre a GNR e a PSP para efeitos de segurança interna genérica, segundo critérios de competência territorial, a interpretação a dar àqueles normativos, seria a de que cada uma das forças seria responsável pela “vigilância e protecção de infra-estruturas aeroportuárias” que se situassem na respectiva área de responsabilidade, o que no caso em apreço, deixaria para a GNR a responsabilidade pela segurança deste aeroporto, por o mesmo se localizar na sua área de responsabilidade territorial.”
De seguida parte para outro argumento, desta feita, infelizmente desonesto. Diz o coronel que “foi com este fundamento, refinado com uma particularidade - a da continuidade territorial, que foram desafectadas da responsabilidade da GNR, as auto-estradas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Mas não se percebendo porquê, não foi atribuída em simultâneo à GNR, a segurança do aeroporto de Faro que se situa na sua área de responsabilidade, criando-se naquele local uma “ilha” em termos de segurança, consubstanciada numa clara descontinuidade territorial, o que nos remete para a questão inicial, de que o problema não reside na falta de coordenação, mas antes numa falta de coerência na decisão.”
Ao Polícia Sinaleiro cabe desfazer os equívocos do Coronel.
Ora, o Coronel (certamente por lapso) esqueceu-se de dizer várias coisas:
1. A GNR nunca teve competências de segurança aeroportuária até à publicação da Lei n.º 63/2007 que aprova a sua orgânica actual.
2. Por essa razão, a PSP exerceu essas competências durante mais de 60 anos com qualidade e em regime de absoluta exclusividade e, por isso, sem necessidade de um esforço adicional de coordenação com outra força de segurança – parece-nos fácil de entender: se a missão de segurança aeroportuária só cabia à PSP, nunca existiu necessidade de coordenação com a GNR, logo, o sistema era mais simples e funcional e, por essa mesma razão, nunca até à publicação das novas orgânicas das forças de segurança, tinha havido qualquer razão para o conflito – costuma-se dizer que não se mexe no que está bem, mas não foi esse o caso.
3. Foi o Decreto-lei n.º 34:718, de 3 de Julho de 1945 permitiu à Comissão Administrativa do Aeroporto de Lisboa, a requisição ao Comando-geral da PSP de um destacamento de pessoal cuja composição seria estabelecida de acordo com os critérios da PSP, iniciando esta actividade.
4. O Decreto-lei n.º 575/75, de 6 de Outubro, viria a referir que “O comandante distrital da Polícia de Segurança Pública é o único responsável pelo planeamento, coordenação e execução do sistema da segurança aeroportuária […].” – Assim, até hoje, a PSP exerceu de forma natural estas competências, desenvolvendo-as, melhorando-as, participando na formação e trocando informação e experiência com as autoridades aeronáuticas e as gestoras de aeroportos.
5. A competência de segurança aeroportuária é mais facilmente atribuível a uma só entidade do que, por exemplo, a competência de segurança rodoviária. Isto é assim, porque a primeira exerce-se num sistema fechado com reduzidas comunicações para o exterior e a segunda num sistema aberto com interligações a vários outros sistemas.
6. Em todo o caso a GNR sempre teve obrigações sobre os aeródromos nacionais na sua área de jurisdição e isso nunca foi questionado .
7. São esses aeródromos espalhados pelo território nacional, alguns apenas pistas de terra sem qualquer licença que recebem contrabandos, tráficos e servem para outras actividades ilícitas sem que haja sobre eles uma conveniente vigilância - normal considerando que a GNR se gaba de ser responsável por cerca de 90% do território nacional mas tem mais de um quarto do seu efectivo em Lisboa.
8. É falso, o que diz o coronel sobre as competências de trânsito da PSP e da GNR nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Esse assunto, como bem saberá o coronel (mas obviamente não lhe convinha explicar) está explanado na Portaria n.º 778/2009, de 22 de Julho que define as áreas de responsabilidade da GNR e da PSP, relativas aos itinerários principais e itinerários complementares nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, onde se procede a uma cedência de algumas dessas áreas da PSP à GNR – que se saiba não houve quaisquer contrapartidas dessa cedência mas ninguém se queixou.
9. O surgimento desta competência no quadro funcional da GNR foi uma surpresa extraordinária. Note-se que toda a alteração ao sistema de segurança interna foi feito a partir da Lei Orgânica da GNR e, o mesmo é dizer, foi feita pela GNR.
10. Não só foi colocado um elenco de competências genéricas igual ao da PSP, como foi maliciosamente acrescentada a tal previsão legal que torna tudo mais confuso. É que a orgânica da GNR “esconde” uma norma que refere: “as atribuições cometidas à Guarda pela presente lei (a orgânica da GNR) em matéria de vigilância, protecção e segurança de infra-estruturas aeroportuárias não prejudicam a competência atribuída à PSP nos aeroportos internacionais actualmente existentes”.
11. Isto apenas significa que a GNR pretendeu tornar uma competência exercida a solo pela PSP, algo fracturado e dividido consigo, talvez na expectativa do encerramento do aeroporto da Portela (área da PSP) e tendo em vista a abertura do aeroporto de Alcochete (actualmente área da GNR).
É com sincera incompreensão que se verifica esta sistemática necessidade de expansão que a GNR tem com tudo o que são competência alheias, conflituando com a Armada por causa da segurança da costa, com o Exército por causa das missões no estrangeiro, com os Bombeiros por causa dos fogos e do seu Grupo de Intervenção, Protecção e Socorro (sorvedouro de dinheiro da nação) e claro, com a PSP, porque a PSP existe e é aborrecido não ser a única força de segurança do país.
Tudo isto deverá fazer-nos questionar a coordenação; não aquela que cabe ao Secretário-geral do Sistema de Sistema de Segurança Interna, mas a que deveria caber à tutela da administração interna e ao seu papel de planeador político e estratégico, de condução e de arbitragem, bem como de criador e zelador do Sistema de Segurança Interna.
Agora, muitas vozes se levantam clamando por uma racionalização do sistema.
Muitas delas têm um discurso inteiramente colado ao da GNR e do lobby militar.
Curiosamente, nenhuma parece estar interessada em racionalizar o sistema olhando primeiro para a GNR.
Caminharemos para uma militarização da segurança interna?
DS
A propósito veja-se ainda: